Chapeuzinho Vermelho vai passear no shopping. De ingênua não tem nada. É ela quem se aproxima de Lobinho, o filho do Lobo, e o convida para um sorvete. Nunca mais as velhas histórias serão as mesmas. No ano passado, os alunos da 4a série do Colégio Giordano Bruno, de São Paulo, mudaram o foco narrativo, o enredo e as características essenciais dos personagens dos contos de fadas. Calma, calma. "Não se trata de destruir, mas de reconstruir as histórias tradicionais, de acordo com um enfoque contemporâneo", tranqüiliza a professora de Português Ana Paula Gomes Marquese. "Na Idade Média, quando foram escritos, os contos eram atuais."
Num primeiro momento, a meninada reclama. Por já estarem na 4a série, sentem-se grandes para esse tipo de história. A professora de Português Andréa Tammaro Costa, que lançou a atividade na escola há dois anos, ensina o caminho: as crianças se animam ao descobrirem que elas podem reescrever os contos de fadas. "Queríamos mostrar que o texto não é algo sagrado e intocável", diz Andréa.
FADAS NO PÁTIO
Os alunos leram muito, estudaram as características comuns entre as narrativas e, ao escreverem, procuraram soluções inovadoras. Os personagens deixaram de ser ingênuos, mas não se perdeu a simbologia das situações. Em uma das recriações, a Bela Adormecida espeta o dedo em uma seringa com sangue contaminado com o vírus da Aids.
A partir de um jogo de tabuleiro, a classe criou uma amarelinha misturando os personagens dos contos de fadas, num canto próximo à quadra. Andréa aproveitou a situação para explorar o uso da linguagem. A seu pedido, as crianças elaboraram um requerimento ao diretor da escola solicitando autorização para usarem o espaço. E o diretor respondeu por escrito, à altura. Os alunos maiores ensinaram os menores a jogar e, juntos, divertiram-se com as fadas.
ETAPAS DA RECRIAÇÃO
Muita leitura e estudo precederam as adaptações das histórias tradicionais
A PESQUISA
Depois de explicar os objetivos do trabalho, a professora Ana Paula pediu para os alunos trazerem de casa e da biblioteca da escola os livros que encontrassem sobre contos de fadas. Na sala de aula, selecionaram juntos os títulos que mais interessaram ao grupo. "É um momento importante", ressalta a professora. "A própria escolha já mostra o gosto, os sentimentos e os interesses das crianças." Aquelas que vivem longe dos pais ou se sentem abandonadas escolhem João e Maria, por exemplo. Ana Paula sugere incluir versões diferentes de uma mesma história — que serão depois comparadas — e algumas com estruturas diferentes. Em seguida, ela leu algumas histórias para a classe.
O DEBATE
Primeiro, a professora Ana Paula expôs a história dos milenares contos de fadas, que provêm da tradição oral. Foram transcritos e adaptados a partir do final do século XVII por quatro escritores: o francês Charles Perrault, o dinamarquês Hans Christian Andersen e os irmãos Grimm (Jacob e Wilhelm), alemães. Ela contou também da Idade Média, quando essas histórias começaram a ser escritas. Naquela época, as pessoas viviam em aldeias e as florestas eram, de fato, cheias de perigos. A maioria das pessoas era analfabeta, incluindo os reis. Era comum as mulheres morrerem no parto — não é à toa, portanto, que as madrastas aparecem bastante nas histórias infantis. Havia uma rígida divisão social e a ascensão de uma classe para outra só se dava pelo casamento ou pela descoberta de um tesouro. Em seguida, Ana Paula incentivou os alunos a buscarem as características básicas dos personagens (veja abaixo) e a explorar a simbologia das histórias. Nas florestas da Europa, o lobo era o símbolo do perigo. Na Rússia, era o urso. Quando a professora trouxe a questão para o presente, as crianças apontaram dois perigos: pessoas desconhecidas e ladrões. "Atualmente, a violência urbana é muito mais ameaçadora do que os animais", lembra ela. Os animais, tão perseguidos, tornaram-se as vítimas.
A REESCRITA
Elaborar novas versões para os contos de fadas é o principal objetivo do trabalho. Cada aluno escolhe uma história e põe-se a escrever, com direito a modificar qualquer um dos elementos básicos da narrativa — o foco narrativo, as características dos personagens, o conflito ou o desfecho, por exemplo. "Como já conhecem o enredo e a estrutura, podem se dedicar à criação", diz a professora. As histórias elaboradas pelas crianças foram ilustradas e reunidas em um livro.
HISTÓRIAS BEM PARECIDAS
A 4ª série estudou a estrutura dos contos de fadas e descobriu as seguintes semelhanças entre as narrativas:
Tempo e espaço. Ambos indeterminados. São comuns expressões genéricas do tipo "era uma vez", "há muito tempo", "num certo dia" e "num lugar distante".
Personagens. Seus nomes representam suas características, como Branca de Neve ou Barba-Ruiva. Os heróis são fortes e corajosos; as heroínas, meigas e ingênuas. Os extremos são nítidos. O mal é inteiramente mau, sempre perde e é castigado, ao passo que o bem é absolutamente bom, sempre ganha e é recompensado. É tudo ou nada.
Repetições. Os números três, sete e cem aparecem com freqüência. A classe concluiu que esse recurso facilitava a memorização dos contos, que no início eram transmitidos oralmente.
Desfechos semelhantes. Os contos originais eram trágicos: a bruxa da Branca de Neve é obrigada a pôr os pés em sapatos de ferro quentes e dançar e cantar até morrer. Nas versões modernas, o final mais comum é harmonioso, do tipo "viveram felizes para sempre". Raramente há finais diferentes comoSOLTANDO A IMAGINAÇÃO
Se dependesse da meninada, nunca mais os personagens seriam os mesmos
ENREDOS RENOVADOS
Ao reescreverem os contos de fadas, os alunos mantiveram o "era uma vez" e, algumas vezes, o "viveram felizes para sempre". Os personagens, porém, mudaram bastante. Acompanhe o que fizeram com Branca de Neve.
A versão original | |
Personagens masculinos | |
As sete princesinhas | |
Ela não é mais branca |
PROVA CRIATIVA
Ainda é possível viver feliz para sempre? Com perguntas desse tipo, a professora Ana Paula fez uma prova pedindo para os alunos repensarem os enredos dos contos de fadas.
Onde viveria Rapunzel hoje em dia?
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No lugar do castelo criado pelos Irmãos Grimm, Patrícia Ribeiro pôs Rapunzel morando no alto de um prédio de 111 andares.
Com que roupa Cinderela chegaria ao baile?
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Perrault vestiu Cinderela com amplos vestidos e sapatinhos de cristal. Juliana Cappilli preferiu um vestido curto e apertado.
O que Cinderela perderia hoje, em vez de seu sapatinho?
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Para renovar o conto de Perrault, Natasha von Beszedites lembrou-se do que mais valia na época e não teve dúvidas: Cinderela perderia seu bichinho virtual!
Como João e Maria se livrariam da bruxa que os aprisionou?
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Os Grimm se valeram de um fogão. Luísa Aguilar imaginou que João e Maria se livrariam da bruxa primeiro a encolhendo na máquina de secar e depois colocando-a no microondas.
Onde a Bela Adormecida espetaria o seu lindo dedinho?
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Numa roca de fiar, na história escrita por Perrault e pelos Irmãos Grimm. Ou na agulha de uma seringa contaminada com o vírus HIV, causador da Aids, na original versão recriada por César Felipe de Melo.
Ela não é mais branca
Por Samantha Niizu
Uma menina que morava no décimo andar de um prédio era preta como o petróleo. Envergonhada após uma gozação dos colegas, ela resolve fugir para o campo — e se perde. Encontra uma casa ocupada por anões que pulam e cantam ao som de músicas alegres. Os anões a convidam para entrar, mas a menina, de susto, desmaia. Mas chega um príncipe, montado em um dragão, e a acorda com uma xícara de café. Ele a leva para seu castelo, onde vivem felizes...
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